quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Sobre organicidade e fazer teatral


Pela minha experiência, é sempre errado começar o trabalho com os atores por uma discussão intelectual, porque a mente racional é um instrumento de descoberta muito menos potente do que as faculdades mais secretas da intuição. A compreensão intuitiva através do corpo pode ser estimulada de muitas maneiras diferentes...
Peter Brook


Nas experiências de estágio desenvolvidas pelos alunos do Curso de Licenciatura em Teatro em escolas e comunidade uma das questões mais cruciais é o trabalho com o texto - a transposição do texto para a cena. Para não comprometer a absorção, interesse e aprendizagem dos alunos nas aulas de teatro é importante que a reflexão acima não seja desconsiderada. O que não significa afirmar que a experiência de ensino em teatro constitui-se apenas por práticas. Mas certamente um processo de montagem onde as falas de um texto são simplesmente decoradas pelos alunos e coladas posteriormente às ações marcadas pelo professor de teatro, não possibilita uma aprendizagem significativa, nem tão pouco o desenvolvimento de um processo de montagem orgânico. O conhecimento deve estar relacionado ao fazer teatral.

O trabalho com o texto pode ser visto como mecânico/artificial/inorgânico ou orgânico. O texto se torna processo vivo, quando utilizado como pré-texto, evitando assim, a criação de um abismo entre a palavra e a ação. Tudo se torna verbo vivo, reação viva, quando o texto converte-se num material, num objeto de jogo, que necessita ser explorado lúdica e concretamente no espaço. Aqui a organicidade refere-se ao fluxo de organização natural do processo criativo.

Da mesma forma, a utilização de objetos e peças de figurino, como estímulo anterior ao processo de montagem do texto teatral, durante as improvisações e os ensaios pode contribuir para a organicidade do trabalho. Para Barba, introduzir um acessório significa trabalhar com uma presença ativa que nos ajuda a reagir. É importante que, com a mediação do professor, o aluno-ator saiba descobrir as “vidas” escondidas do objeto, as suas múltiplas possibilidades de uso num processo de criação.

Um trabalho construído organicamente tem sua força, segurança e realidade. Como todos fizeram parte deste processo, todos o dominam e torna-se, pois, significativo. A espontaneidade prevalece sobre a mecanicidade. A ação e não o texto escrito, são a base, a estrutura do texto teatral: a cena. Nas palavras de Eugênio Barba: “No início e como base de tudo existe a ação com seu sangue e sua pele, com uma motivação e uma forma perceptível. Esta é a célula mais simples de um organismo complexo: o espetáculo. Mas se as células são frágeis, o organismo se despedaçará com o tempo.” (Barba, 1994, p.234)

Nesse sentido, Peter Brook dá sua contribuição ao relatar que inicia o processo de montagem com exercícios, com uma festa, com qualquer coisa, menos com idéias. É comum encontrarmos professores perguntando o que fazer e como fazer, no que se refere ao ensino de teatro na sala de aula. As idéias iniciais podem chegar até os alunos através de fragmentos de um filme, texto literário, matéria de jornal, poemas, pacote de estímulos, etc. Utilizando esses elementos como pré-texto, trabalhando com o corpo e explorando o texto sensorialmente estaremos abrindo as portas da intuição e da imaginação – o que facilitará e muito, os momentos de discussão intelectual, produção de narrativas, elaboração, reflexão e avaliação do que é produzido.

Certamente, seria menos trabalhoso para o professor distribuir textos e mandar os alunos trabalharem em diferentes espaços, ou ainda, organizar leituras de mesa. Mas da mesma forma que a trama teatral precisa criar expectativa sobre o que virá a seguir, o professor pode ampliar a absorção dos alunos na aula de teatro através da multiplicidade de suas escolhas metodológicas. Os jogos de apropriação textual, sugeridos por Maria Lúcia Pupo em seu livro "Entre o Mediterrâneo e o Atlântico, uma aventura teatral" (2005) oferecem um campo de possibilidades para iniciarmos o trabalho com os alunos-atores a partir da articulação do caráter lúdico e textos narrativos. Em seu estudo, ela construiu, experimentou e avaliou práticas teatrais que articulassem jogos e textos narrativos. Por um lado, apresenta diferentes procedimentos lúdicos que conduzem do texto de ficção à realização da cena. Por outro lado, os participantes partem do jogo teatral para chegar à escrita dos textos. Seus procedimentos encaram o texto como um músculo que também possibilita a desmecanização do corpo do aluno em cena.

Como não temos atualmente muitas obras que se dediquem à teatralidade confeccionada no sistema escolar, é importante que o professor de teatro esteja atento à produção das pós-graduações que discutem as pedagogias do teatro. Muitos desses trabalhos refletem as pesquisas que vem sendo realizadas no intuito de aprofundar o conhecimento sobre as práticas pedagógicas teatrais. O teatro praticado nas escolas não precisa estar alheio aos movimentos teatrais recentes e aos princípios de encenadores contemporâneos. Esses estudos vêm encurtando as distâncias entre os cursos de Bacharelado e Licenciatura em Artes Cênicas, e renovando o olhar do profissional de teatro que reestrutura dia a dia o seu fazer teatral.