Ciência e Cultura – Conte-nos um pouco de sua história e que a levou optar pelo teatro.
Célida Mendonça – Sou
catarinense, nasci na cidade de Rio do Sul. Meu pai é baiano, desenhista
publicitário e artista plástico autodidata. Comecei a fazer teatro
ainda adolescente, no mesmo período em que concluía o magistério. Na
mesma época, fui surpreendida ao encontrar no jornal o anúncio de um
novo curso, Educação Artística com Habilitação em Artes Cênicas, hoje Curso de Bacharelado e Licenciatura em Teatro no Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), onde iniciei o curso em Florianópolis.
Não tinha condições de me manter na
capital, mas ao passar no vestibular, recebi o apoio da família e aos
poucos as soluções foram aparecendo. Durante o curso, trabalhei como
monitora em alguns projetos de ensino de teatro na comunidade, ao mesmo
tempo em que participava de um Grupo de Teatro local. Terminado o curso,
voltei para a minha cidade onde a opção pelo ensino de teatro foi se
solidificando na prática em fundações, escolas e universidades. As
mudanças que observava nos alunos de teatro me instigaram a cursar
especialização em Psicopedagogia. Voltando a Florianópolis lecionei por
alguns anos no curso em que havia me formado e continuei a trabalhar com
crianças e adolescentes no Departamento Artístico Cultural da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e na Escola Sarapiquá. No
aspecto pedagógico, a escola se fundamentava na abordagem construtivista
e nos métodos dos educadores Celestin Freinet e Paulo Freire e vinha
sofrendo influências de pensadores como César Coll, Phillipe Perrenoud,
Delia Lerner e Tomaz Tadeu da Silva, valorizando a pesquisa e oferecendo
formação continuada aos profissionais da escola. Além disso, o curso em
Psicologia Existencialista (Núcleo Castor de Estudos e Atividades em
Existencialismo – Nuca) contribuiu significativamente para o
amadurecimento de questões ontológicas, antropológicas e psicológicas
pertinentes ao processo educacional.
Ciência e Cultura – Como surgiu a idéia do seu tema de pesquisa?
Célida Mendonça – Minha
motivação para pesquisar os processos de criação cênica realizados no
ensino fundamental, surgiu a partir das práticas teatrais desenvolvidas
nas escolas em que lecionei, bem como minha experiência como professora e
orientadora de estágio nas disciplinas de Teatro na Educação na Udesc.
Tanto na escola como na universidade, pude observar as relações que se
estabelecem no percurso criador cênico envolvendo singularidades no
aspecto social, no aspecto simbólico-imaginário, nas relações entre
jogos preparatórios, jogos teatrais, técnicas e processos de criação e
no enriquecimento progressivo do potencial criador de cada aluno. Estas
questões motivaram meus estudos e a escola pública foi escolhida como
campo de pesquisa em função dos impasses enfrentados pelos alunos de
graduação em suas experiências de estágio. O tema “Fome de quê?” Processos de Criação Teatral na Rede Pública de Ensino de Salvador surge
logo nos primeiros encontros com as crianças que freqüentavam a 4ª
série em um dos campos de pesquisa para o doutorado. A fome enquanto
metáfora foi identificada na relação desses alunos com o espaço e com a
materialidade que lhes era oferecida para desencadear o processo
criativo: imagens, músicas, tecidos, instrumentos, registro fílmico e a
transformação da sala de aula.
“Através do teatro ocorre uma
diminuição da supervalorização dos erros e um enriquecimento da
conscientização da ação, fortalecendo na criança a autoconfiança, a
comunicação, a objetividade, a absorção e o desenvolvimento da
capacidade de concentração”
Através do olhar de cada um deles
era possível observar que a aula de teatro tinha um sabor, no sentido de
“ter o gosto de” ou “o sabor de”, e um significado diferenciado.
Inicialmente por conta da abordagem pedagógica tradicional (a
metodologia do quadro e giz, aula expositiva e reprodução) ainda muito
presente nas escolas, um ensino excessivamente abstrato e desvinculado
de reflexões, descontextualizado, e que desconsidera o corpo no processo
e aprendizagem, enfim, distante da realidade e da sociedade em que
vivemos; e em segundo lugar, por possibilitar uma nova relação com o
espaço e com os colegas. Cada elemento oferecido para o grupo era
devorado com voracidade não apenas por tratar-se de uma aula de teatro,
mas por tornar o ensino atraente e significativo. É importante lembrar
que a possibilidade de atividades inovadoras que tornem as aulas
dinâmicas, prazerosas, interessantes e produtivas, resultando em
verdadeira aprendizagem, não se restringe apenas ao ensino de artes.
Ciência e Cultura – Como surgiu a
ideia de fazer um trabalho criativo indo além do molde acadêmico
usando, por exemplo, a metáfora da refeição dividida em entrada, prato
principal e sobremesa para dividir as etapas de sua pesquisa?
Célida Mendonça – A imagem aqui escolhida de uma “refeição” associada às várias etapas do processo criativo; originou-se de minha experiência na disciplina Processos de Encenação (2006) oferecida
pelo doutorado no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (Ufba). O
curso ministrado pela professora Dra. Sonia Rangel disponibilizava uma
variedade de autores no formato de “cardápio” para serem saboreados
pelos alunos. As discussões suscitadas influenciaram o formato deste
trabalho permitindo que aflorasse “a ludicidade em rizoma
indispensável de criação”. A disciplina estabelecia relações com os
projetos de pesquisa individuais, propondo uma reflexão sobre os
processos de encenação como processos criativos, oferecendo subsídios
para identificar e desenvolver os campos de conhecimento que cada
projeto instaurava; o que contribuía, a meu ver, para um diálogo entre
filosofia, poesia e arte. Além disso, pelo pouco tempo em que aqui
resido pude observar o papel da comida nessa cultura, aliado é claro, às
lembranças de infância no quintal de meu bisavô quando vinha à Bahia de
férias. Ao iniciar minha experiência na escola, as imagens da fome e da
refeição se fizeram presentes de forma análoga, sendo apropriadas como
uma moldura, possibilitando o diálogo com uma emoção estética impossível
de ser capturada em outra situação que não fosse aquela da experiência
vivida.
Ciência e Cultura – Qual foi sua
percepção do teatro na escola pública, a partir da sua experiência
prática durante o doutoramento?
Célida Mendonça – Antes
de falar do teatro nas escolas, não há como ignorar o ensino nesses
espaços. O que mais me entristece é constatar a falta de diálogo entre o
administrativo e o pedagógico em várias instituições. Fui surpreendida
ao verificar que muitas escolas não dispõem nem ao menos de uma área
externa coberta, além das salas de aula. No que diz respeito ao ensino
de teatro nas escolas, ele vem ganhando espaço com os concursos públicos
que fazem valer a obrigatoriedade do ensino de arte, como o que já
acontece a nível municipal, mas ainda é pouco. Muitas escolas oferecem o
teatro apenas a nível extracurricular através de projetos ou oficinas.
É comum a linguagem não ser compreendida
como área de conhecimento, mas como um recurso didático ou como
instrumento pedagógico para o ensino de conteúdos extra teatrais,
ligados a diferentes disciplinas do currículo, ou ainda, a serviço de
apresentações encomendadas pela direção da escola. O teatro tem seus
próprios conteúdos, assim como outras disciplinas, e enfrenta problemas
como a falta de espaço, tempo reduzido e número excessivo de alunos por
turma. Felizmente as pesquisas realizadas em congressos de Arte e
Educação e de Teatro, vem propondo soluções e alternativas para driblar
as dificuldades encontradas. Como professores de teatro nosso desafio
permanente é construir novos espaços, transpor esses limites
estabelecidos através da carência estrutural da escola pública, do
ambiente, muitas vezes, triste e carregado, da falta de hospitalidade e
afetividade. A sala de aula ainda pode converter-se em um espaço vivo, exercendo atração e interesse nos alunos, reencantando a educação.
Ciência e Cultura – Falando do
teatro como forma de recuperação da autoestima, que influencia mudanças
de comportamento das crianças com as quais trabalhou, como foi a
convivência com estas crianças e quais resultados obteve?
O teatro possibilita ao aluno conhecer
melhor suas experiências, estimulando-o a se expressar amparado por um
conhecimento, por uma linguagem. Ele promove a conscientização, uma
noção de coletividade, de proximidade, uma visão mais crítica e sensível
da realidade, o que altera em consequência a maneira de pensar e de
agir. O jogo teatral, utilizado com frequência como metodologia de
ensino, contribui com uma representação física e consciente, limitada
por regras e acordo grupal, acompanhada de espontaneidade, tensão e
entusiasmo. É do exercício da percepção, da imaginação e da socialização
que surge a criança mais sensível e segura, mais aberta à produção do
conhecimento e ao processo criador. Os fatores de ordem afetiva e de
personalidade, uma das possíveis causas do fracasso escolar, podem ser
amenizados quando a criança compartilha o mundo com seus colegas.
Através do teatro ocorre uma diminuição da supervalorização dos
erros e um enriquecimento da conscientização da ação, fortalecendo na
criança a autoconfiança, a comunicação, a objetividade, a absorção e o
desenvolvimento da capacidade de concentração. A própria natureza
artística do fazer teatral, comporta em si mesma, um valor educacional
mais amplo, relacionado as suas próprias qualidades estéticas.
Podemos arriscar afirmar que, a mudança
de comportamento passa a acontecer também quando os alunos identificam
no professor alguém que se preocupa com eles, alguém em quem confiar.
Nas palavras de Madalena Freire, “não existe educação sem conhecimento,
sem amor, sem esses ‘temperos’ que condimentam o sentido da vida, da
educação”. As demonstrações de afeto e leves sorrisos começaram a ser
mais frequentes no grupo quando o desejo e a segurança se estabeleceram,
o que não significa afirmar que as dificuldades deixaram de se fazer
presentes. Viabilizar aos alunos uma experiência criativa é dar
oportunidade de ver, de observar e ser observado, de se conhecer,
exercitando-os para uma vida social e sociológica. Muitos nem sabiam o
nome dos colegas de turma, muitos nunca haviam trabalhado em grupo
antes. São detalhes tão pequenos, mas extremamente significativos quando
falamos de educação.
Ciência e Cultura – Quais foram as mudanças na sua percepção e comportamento após a vivência prática de sua pesquisa?
Célida Mendonça – Não
posso negar certo desânimo em relação à educação quando após essa
experiência pude estar cara a cara com o abismo que existe entre as leis
e direitos em nosso país e o que efetivamente encontramos nas escolas.
Infelizmente o sistema educacional vigente não desperta o apetite em
nossas crianças e adolescentes. É preciso sair das quatro paredes,
discutir conteúdos vivos, visões de mundo, ensinar a ver, tocar, sentir,
criticar, “apalpar as intimidades do mundo”, como diria Manoel de
Barros. A mudança de comportamento vem no sentido de reafirmar ainda
mais que apenas as ações modificam. Continuo insistindo com meus alunos
que “apesar de”, precisamos alimentar o desejo em nossa atuação como
profissionais, precisamos continuar pesquisando, repensando nossas
práticas, nossas certezas e enfrentando o desafiador cotidiano escolar. A
escola pública seria o lugar ideal de democratização do ensino da arte e
do acesso à formação estética e cultural, mediada igualmente pelo uso
da tecnologia, mas a condição faminta ainda é o resultado de uma
desigualdade social e do descaso, mas não da conformidade em relação à
qualidade da educação pública.
Ciência e Cultura – O
poder público tomou conhecimento dos resultados de sua pesquisa? Se
sim, houve receptividade, o que aconteceu? Se não, por que não houve
materialização de um projeto baseado em sua pesquisa?
Célida Mendonça – Apesar
do trabalho de pesquisa estar disponibilizado na página da biblioteca
digital da Ufba, acredito que o poder público não tenha tomado
conhecimento. Seria importante que as políticas que incentivam o ensino
de Arte favorecessem uma prática pedagógica que atenda à necessidade de
aprendizagem dos alunos do sistema público de ensino, dentro do seu
contexto social e cultural. O poder público se mantém muito distante
dessas realidades, acredito que nem ao menos questione a existência ou
não do ensino de Arte em muitas escolas, aqui e no interior do estado,
bem como a qualidade com que esses processos vêm sendo desenvolvidos,
quando ocorrem. Além disso, encontramos profissionais sem formação
adequada ocupando a função de docentes. Quando o assunto é educação o
que estamos acostumados a ver são: professores desmotivados e faltando
com frequência, greves, evasão escolar, superlotação em sala de aula,
salas de aula interditadas, inexistência de áreas de lazer, falta de
equipamentos, equipamentos sem uso, entre outros. Muitos programas de
ensino não oferecem as condições mínimas de funcionamento nas escolas, a
questão se reduz a metas cumpridas, estatísticas, números. Assim, antes
de se falar do ensino de teatro, é preciso falar simplesmente de
ensino.
*Publicitária e pós-graduanda em Jornalismo Científico e Tecnológico pela Ufba
Saiba mais
“Fome de quê? Processos de Criação Teatral na Rede Pública de Ensino de Salvador”