segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Fome de quê?


Romper barreiras, ir até onde as pessoas estão. (...) a solução dos problemas do país não está na economia, mas na cultura; são os paradigmas culturais que definem as escolhas econômicas. (...) Só a cultura artística verdadeiramente civiliza, não é mesmo?
Paulo Eduardo Arantes

Para o filósofo, a rigor, a civilização ainda não começou, ou então, o que vivemos é apenas um outro nome para a barbárie de sempre. Exagero? Quem sabe? Experimente saborear o gosto amargo da atual situação do ensino público brasileiro pelas lentes de João Jardim. O documentário Pro dia nascer feliz (2006) nos esfrega na cara uma de nossas maiores tragédias sociais: o abandono e o congelamento da educação. Um filme duro que mostra através do depoimento de professores e alunos um retrato da inviabilidade de nosso país. Um país que ainda tem muita fome. Além de uma gritante desigualdade de oportunidades o filme reforça o que não é novidade: a escola pública esta desacreditada e não cumpre mais a sua função.

Todos os dias, quase 30 mil dos 230 mil professores da rede estadual de ensino paulista faltam às aulas. O número significa uma ausência diária de 12,8%. Estudos nacionais e internacionais já confirmaram o que não é surpresa: há uma relação estreita entre o absenteísmo dos docentes e a perda de aprendizagem. Esse quadro não é privilégio apenas do estado paulista. O quesito qualidade é o “x” da questão principalmente nos estados nordestinos. Dizer que a maioria das crianças freqüenta as escolas, não significa garantia de aprendizagem. Há 2,1 milhões de crianças entre 7 e 14 anos no país que, mesmo freqüentando a escola, continuam analfabetas. É o que mostra a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Ignorando este quadro a mídia se encarrega de despolitizar a desigualdade, afirmando que o nosso país vive um momento excelente com a qualidade de ensino subindo nas pesquisas. Estamos realmente ampliando o acesso à educação, mas o que podemos dizer da eficácia do ensino que vem sendo oferecido nas escolas públicas brasileiras?

A socióloga Miriam Abramovay[1], uma das coordenadoras da pesquisa Juventude, Violência e Vulnerabilidade Social na América Latina: desafios para Políticas Públicas, realizada pela Unesco afirma que os jovens chegam até um certo ponto do processo educativo e param. Muitos estudantes de escolas públicas não conseguem entrar na universidade, e isso lhes dá um forte sentimento de exclusão. Um novo indicador calculado pelo Banco Mundial aponta que as oportunidades educativas oferecidas às crianças brasileiras são piores que a média latino-americana[2]. E continuamos a ouvir números... Enquanto que as expressões qualidade, metodologia e formação eficaz permanecem no limbo. Os professores mais despreparados, com menor formação e remuneração são justamente os do ensino público.

As escolas estão cheias de professores que fingem ensinar e alunos que fingem aprender. Nas palavras do mineiro Tião Rocha[3] “a escola está encaixotada no formol”. Sair das quatro paredes, discutir conteúdos vivos, visões de mundo, ensinar a ver, tocar, sentir, criticar. Aprender fazendo – ação, reflexão, ação, é o que ele propõe. Ruas, praças, shoppings, bares, botecos e outros espaços públicos são “regiões abertas”, enquanto que nossas escolas públicas ainda convertem-se em “regiões fechadas”, que cheiram a mofo. Nossas escolas não podem ser vistas como fonte de prazer e realização. Nas palavras de Rubem Alves “só aprende quem tem fome”. Infelizmente o sistema educacional vigente não desperta o apetite em nossas crianças e adolescentes.

Mas falemos de nosso lugar. Em 2005, 15% dos alunos baianos matriculados no ensino fundamental da rede estadual abandonaram o colégio. Em 2006 a manchete era “A falência do ensino público”. E em 2007 “Bahia tem piores índices de escolaridade de todo o Brasil”. Em Salvador, muitas escolas têm seus turnos vespertinos desativados por falta de alunos. No ensino médio, o índice de abandono é ainda maior: 21%, de acordo com dados da Secretaria de Educação da Bahia. Atuamente, o tempo de duração para se concluir o ensino fundamental da 1ª à 8ª série é maior do que o esperado. Ao invés de concluir em oito anos, os baianos demoram 12 anos para terminar o curso.

Experimente ainda circular pelas nossas escolas ou conversar com os alunos que perambulam pelas ruas de Salvador muito antes do final do turno letivo. O que encontramos nas escolas, em sua maioria, são professores que faltam com freqüência[4], uma pedagogia tradicional que se resume na metodologia do quadro e giz, aulas expositivas centradas no professor, conteúdo livresco, repetição enfadonha de exercícios e imposição de disciplina, além de um descrédito que cresce em relação ao sistema educacional por parte de professores e alunos. Sem esquecer de mencionar a evasão escolar, a violência, alunos sem recreio, superlotação em salas de aula, inexistência de áreas de lazer e as greves que se repetem a cada ano.

Mas de qual fome mesmo estamos falando? A própria origem da palavra fome está associada ao aparecimento da desigualdade social no mundo. Derivada de fame, do latim, e essa de famulus – escravos ou servos, na língua portuguesa vão gerar vocábulos como fâmulo, famulentos, famélicos, ou que têm fome. Difícil desejar provar o que se desconhece o sabor. Vi muitas vezes galerias sendo fechadas por falta de público, matérias em jornal que tentam atrair a população para freqüentar os museus de suas cidades, ônibus disponibilizados para a ida ao teatro que não chegam a seu destino, por falta de quem acompanhe os alunos. O prazer advém da experiência, o gosto pela fruição artística precisa ser provocado. Nesse contexto, sinalizo a escola pública como via de democratização do acesso à arte, como um local, muitas vezes, caótico, árido, mas igualmente fértil, e possível de despertar apetites. Parafraseando o sociólogo francês Michel Maffesoli (1995): “(...) é a partir do caos que se opera uma recriação total”.

No caos da escola pública, fome e invisibilidade são reconhecidos como elementos que saltam aos olhos. A fome identificada nesses espaços não se refere à ausência de um único alimento. É fome de imagens, fome de afetividade, fome de aulas planejadas e bem preparadas, fome de reconhecimento, de socialização, de visibilidade, de descoberta, de prazer, de materialidade, de tecnologia. E, sobretudo, fome de Cultura, fome de Arte.

Em discurso[5] realizado pelo nosso ex-ministro Gilberto Gil, Cultura é vista como um prato suculento para saciar fomes mais sutis, mas não menos importantes, onde o espírito, a reflexão e a capacidade de sentir e traduzir realidades explícitas e implícitas sejam consideradas. Vidatão básica como alimento, emprego, segurança e saúde. O foco central dessa teia estaria, não por acaso, na relação entre Cultura e Educação, ou se preferirmos, na relação entre Arte e Educação.

Seria então sonho, delírio ou utopia, converter as escolas estéreis e antiestéticas em janelas culturais abertas de par em par? Certamente arte não enche barriga de ninguém, mas ainda hoje é o principal ingrediente ausente nas escolas, enfraquecidas de sabor. Um prato ainda desconhecido para muitas crianças de periferia que ainda não o provaram, mas que com certeza sabem perfeitamente que roupa vestir, que música ouvir e que programa de televisão querem assistir. Como a fome crônica o faminto sequer concebe seu sofrimento e muitas vezes se acomoda, por não sentir quaisquer perspectivas de mudar a qualidade de sua vida, e por lhe faltar reflexão para reconhecer a possibilidade de um outro estado para si. Esse gosto é um gosto que se constrói, com ingredientes que permitam ao aluno da escola pública olhar, observar e se espantar com a realidade; ensaiando assim uma nova relação entre estômago e mundo. Democratizar o acesso à cultura e à arte com políticas públicas adequadas seria simplesmente isso: transformar um pequeno círculo de iniciados em um grande círculo de iniciados, não mais famintos. Para quê? Enquanto forma organizadora do nosso imaginário, enquanto fim em si mesmo, a arte é ainda hoje, a única chance de acordar.

[1] Professora da Universidade Católica de Brasília, Miriam Abramovay vem se dedicando ao estudo dos jovens escolarizados do Brasil. Formou-se em Sociologia e Ciências da Educação pela Universidade de Paris, na França, e possui mestrado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
[2]O Índice de Oportunidades Humanas (IOH) é uma tentativa de "medir se as chances estão distribuídas de maneira equitativa" entre os indivíduos de um país logo no início da vida. Em uma escala de zero a cem, o IOH brasileiro na área educacional ficou em 67 pontos, abaixo da média latino-americana de 76.
[3] Tião Rocha, mineiro, seguidor de Paulo Freire, com trabalhos desenvolvidos em vários estados e em Moçambique. Desenvolve em Minas a primeira “Cidade Educativa” que pretende espalhar pelo Brasil.
[4] Com a estabilidade do emprego público, muitos professores faltam às aulas, não cumprindo a carga horária mínima. Este quadro pode ser identificado também em outros estados através de matérias veiculadas pela mídia.
[5] GIL, Gilberto. Discurso do ministro Gilberto Gil na cerimônia de lançamento da TEIA 2007, 28 de agosto de 2007, Belo Horizonte, BH. Disponível: http://www.cultura.gov.br/site/categoria/o-dia-a-dia-da-cultura/discursos/. Acesso em 20 agosto de 1998.

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