terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Arte, Cultura e Privação



O que será que ainda falta para o poder público levar em conta que o ensino de artes é obrigatório desde a educação infantil até o ensino médio? Se a educação escolar tem por objetivo, em termos mais amplos dar acesso ao saber, e em consequência à cultura, como produção coletiva e patrimônio de toda uma sociedade, infelizmente ela ainda não cumpre o seu papel.

A disparidade educacional que pode ser encontrada sem muita dificuldade reforça a noção de “brasilianização do mundo” defendida pelo filósofo Paulo Eduardo Arantes em A fratura brasileira do mundo. Conforme Arantes (2004), muitos países estão na mesma perspectiva do que o Brasil é hoje, um país dividido em duas sociedades contrastantes: uma com oportunidades econômicas, educacionais, culturais; outra no vazio social. Nesse contexto podemos afirmar com segurança que a questão da exclusão cultural está intimamente relacionada à desestruturação do ensino.

A efetivação do ensino de arte em todas as escolas de educação básica, o que já é garantido por lei, se faz urgente no sentido de acelerar o processo de democratização no acesso à cultura, à cultura popular e à cultura dita erudita. Não podemos entender a cultura de um país sem conhecer sua arte. É fato que ninguém gosta ou se interessa por algo que desconhece. Difícil, então, desejar o desconhecido, difícil ter fome do que se desconhece o sabor, do que nunca foi provado. Assim, é a escola pública, esse local muitas vezes, árido, desgastado, mas igualmente fértil, a principal via de acesso à cultura – um lugar possível de despertar apetites, de despertar o gosto pela arte.

Nossa diversidade cultural e o consumo do que se produz no país esbarram numa significativa e evidente exclusão sociocultural. Uma minoria de brasileiros compra livros, vai ao cinema, ao museu, ao teatro ou já assistiu a um espetáculo de dança; mais de 75% dos municípios não têm centros ou espaços culturais. Esse difícil acesso está estreitamente relacionado à desigualdade de renda, mas também a desigualdade espacial.

Nesse sentido, uma iniciativa que visa estimular a visitação a estabelecimentos de serviços culturais e artísticos, foi criada recentemente pelo governo federal. O Vale Cultura, um benefício na promoção da inclusão sociocultural, disponibilizará R$ 50 mensais para consumo cultural de quem recebe até cinco salários mínimos. O recurso une a renúncia fiscal e uma contribuição mínima do trabalhador e da empresa que permitirá disponibilizar essa quantia. Com o Vale Cultura os trabalhadores poderão adquirir ingressos de cinema, teatro, museu, shows, livros, CDs e DVDs, entre outros produtos culturais.

Para Antoine Kolokathis, diretor-fundador da Direção Cultura - produtora cultural de Campinas (SP), com 10 anos de atuação em projetos culturais que visam a formação de público, o valor disponibilizado não garante um consumo cultural de qualidade, podendo ser gasto em revistas de variedades. E acrescenta: "E tenho plena certeza de que a formação de público para bons produtos culturais, a criação do hábito social de prestigiar e consumir a cultura, passa inquestionavelmente e em primeiro lugar pela escola. É nela que a pessoa precisa ser educada a ter o gosto pelo consumo cultural".

Assim, a desigualdade frente ao acesso da produção cultural é resultado, também, da desigualdade frente à educação, frente a uma escola de qualidade, que crie a necessidade cultural, que desperte essa fome apontando para os meios de satisfazê-la. Esse abismo entre quem faz e quem consegue ver, ouvir e ler reproduz uma acentuada separação na sociedade entre os que ampliam seu olhar estético e crítico, e os que ainda estão distantes. Tal processo só ocorre quando há acesso a informação, à memória cultural e ao conhecimento artístico.

Para Bourdieu (1998), “a privação em matéria de cultura não é necessariamente percebida como tal, sendo o aumento da privação acompanhado, ao contrário, de um enfraquecimento da consciência da privação”. A pré-disposição à arte não é privilégio de alguns, mas hábito construído e possível a todos. Nesse sentido, somente a efetivação do ensino de arte, ainda inexistente em muitas escolas, poderia diminuir a distância entre aqueles que ainda não reconhecem em seu meio o desejo pela prática cultural e os que já desfrutam dela com conhecimento, criticidade e liberdade de escolha.

O ensino da música, do teatro, da dança e das artes visuais possibilita a ampliação do repertório estético e de uma visão crítica da realidade, contribuindo para a formação de cidadãos que participam da produção cultural de seu tempo, capazes de compreender a cultura erudita e popular a partir do contexto próximo. Contudo, não é só incluindo arte no currículo que estaremos favorecendo a construção de uma identidade cultural, é também necessário se preocupar como a arte é concebida e ensinada.

Nessa direção é importante salientar que um número considerável de escolas não possui profissionais com formação específica em artes. Algumas delas impõem o reduzido horário destinado ao ensino de artes aos professores que precisam complementar sua carga horária, mesmo sem qualificação para tal. Concursos públicos (em todos os estados) para professores de Artes Visuais, Dança, Música e Teatro estariam mais de acordo com o que propõe a Lei nº 9.394/96, na qual a Arte é considerada obrigatória na educação básica: “O ensino de arte constituirá componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos”. Não apenas a realização de concursos, mas a incorporação desses profissionais ao corpo docente das escolas, reaproximando o universo da educação do universo da arte e da cultura. É inegável a necessidade de que se cumpra a lei, sendo portanto implementadas políticas mais eficazes e consistentes no sentido de garantir a inclusão do ensino da arte com qualidade, o acesso ao fazer artístico, à compreensão da produção estética e ao conhecimento do patrimônio cultural.

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