sexta-feira, 2 de julho de 2010

A lona



Dia chuvoso. Nenhuma área externa coberta. Uma turma de 4ª série do ensino fundamental: quarenta alunos. A primeira aula de teatro era aguardada por todos. Na área interna da sala de aula mal havia espaço de circulação entre as carteiras. A saída seria então esvaziar a sala tirando tudo, empilhando apenas as carteiras que não obstruíssem o espaço. Como em uma brincadeira, um grupo de alunos começa a retirar as carteiras da sala organizando-as no pátio. Em minutos, o espaço é transformado e devorado. Sala vazia. Um aluno que me observa limpar a lona lança-se sobre ela deslizando com o pano umedecido, dando continuidade ao trabalho. Outros tentam unir-se a ele e são repreendidos pelos colegas com o alerta de que devem tirar antes os calçados. A lona era erguida por vários corpos formando uma enorme centopéia que invadia a sala. A entrada da lona suspensa em movimento convertia-se num momento cênico com o seu volume no espaço, preenchido pelos corpos livres dos alunos.

Por vezes, os espaços institucionais onde nos instalamos são excessivamente carregados de sentido pelos participantes que vivem e trabalham neles. É ainda mais apaixonante desconstruí-los e aproveitar todos os cruzamentos de sentidos que aparecem. O jogo é um meio de “recarregar” os espaços. (RYNGAERT, 2009, p.128)
Instaurar um novo lugar, novo esteticamente e novo na relação desses corpos “soltos”– parecia emergente. A lona atuava de certa forma, como o tapete utilizado por Peter Brook como zona de ensaio, como espaço de jogo. Naturalmente que as intenções do encenador inglês com a introdução do tapete em seu processo de trabalho não eram as mesmas com um grupo de alunos que nunca havia experimentado a transgressão do espaço escolar. Entretanto, as primeiras imagens daqueles corpos livres sobre a lona se aproximavam de um verdadeiro playground, expressão utilizada pelos críticos ao descreverem a zona de atuação proposta por Peter Brook:

Posteriormente, para grande alegria nossa, alguns críticos chamaram este espaço de playing field, expressão que se usa na Inglaterra somente para esportes, ou playground, nome que se dá ao pátio de recreio numa escola, dois termos que correspondem exatamente ao que pretendíamos desde o início – um lugar para o jogo cênico ou, em outras palavras, um lugar em que o teatro não pretendesse ser nada mais que teatro.” (BROOK, 2000, p.101)

Mesmo que aparentemente caótico e desesperador o espaço instaurado pela lona passou a dar vida àquele lugar onde se iniciava uma nova maneira de lidar com o corpo. No princípio era apenas o êxtase: algumas meninas ficavam de lado, olhando desconfiadas, enquanto os meninos viravam cambalhotas, estrelas, saltos, reproduziam golpes de luta, passos de capoeira. Ou ainda, atravessavam a lona carregando os colegas ou arrastando-os pelo espaço. As paredes da escola continuavam descascadas e mal pintadas, mas a sala era transformada em um espaço vivo. Para Peter Brook o que determina a diferença de um espaço vivo e um espaço morto é justamente a maneira como as pessoas que estão neste lugar se colocam uma em relação a outra.

Inicialmente nenhuma proposta foi instaurada, mas a maioria dos alunos encarava cada etapa como parte de um jogo de desconstrução desse espaço, que possibilitou, de certa forma, destruir a aparente estabilidade. Entre as características fundamentais do jogo apontadas por Roger Caillois (1990), identificamos em uma delas, o ilinx , na reação desses alunos. Na movimentação já mencionada anteriormente onde os alunos viravam cambalhotas, estrelas, saltavam, giravam, arrastavam os colegas, reproduziam golpes de luta e de capoeira, a perturbação provocada pela vertigem convertia-se em busca. Caillois sugere que essa vertigem está associada ao gosto, muitas vezes reprimido, pela desordem e pela destruição.

Em todos os casos, trata-se de atingir uma espécie de espasmo, de transe ou de estonteamento que desvanece a realidade com uma imensa brusquidão. [...] Cada criança sabe também que, ao rodar rapidamente, atinge um estado centrífugo, estado de fuga e de evasão, em que, a custo, o corpo reencontra o seu equilíbrio e a percepção a sua nitidez. [...] Gritar até a exaustão, rolar por uma ladeira, o toboggan, o carrocel, se andar suficientemente depressa, e o baloiço, se for suficientemente alto, provocam sensações análogas. Há vários procedimentos físicos que as provocam: o volteio, a queda ou a projecção no espaço, a rotação rápida, a derrapagem, a velocidade, a aceleração de um movimento rectilíneo ou a sua combinação com um movimento giratório. (CAILLOIS, 1990, p.43-44)

Diante das primeiras propostas orientadas sobre a lona, três movimentos ganhavam evidência no grupo: um primeiro de querer fazer e abraçar a novidade, um segundo de se ver exposto e recuar e um terceiro movimento de agitação geral, não sabendo o que fazer com a liberdade disponibilizada. A lona sugeria a possibilidade de transformar e redimensionar esse espaço, mas era evidente que ao se defrontarem com esse novo signo, não reconheciam nele uma área delimitada para a prática teatral, e sim um lugar em que a relação corpo X espaço mostra-se extremamente diferenciada do que lhes era oferecido cotidianamente na escola. Um lugar onde, de certa forma, tudo era permitido. Um lugar onde o corpo se redescobre, como bem descreve Carmela Soares (2006, p.98): “Corpos inertes na cadeira, tão jovens e tão sem esperança. A alegria das descobertas explode no prazer de jogar, na curiosidade e no desejo de fazer. Tantas subjetividades em jogo, tantos desejos ocultos, tantos medos, fantasmas e modelos incorporados”.
É sempre importante que acreditemos que nossa maneira de olhar o mundo, e agir nele, pode modificar significativamente nossas relações (e em decorrência, o mundo): “A cada instante uma nova e inesperada qualidade pode surgir dentro de uma ação humana – e, tão rápido quanto isso, ela pode ser perdida, encontrada e novamente perdida”. (BROOK, 2000, p.310)

BROOK, Peter. A porta aberta: reflexões sobre a interpretação e o teatro. Trad. Antonio Mercado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
CAILLOIS, Roger. Os Jogos e os Homens: A máscara e a vertigem. Trad. José Garcez Palha. Lisboa: Cotovia, 1990.
RYNGAERT, Jean-Pierre. Jogar, representar: práticas dramáticas e formação. Tradução: Cássia Raquel da Silveira. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
SOARES, Carmela Correa. “Teatro e Educação na Escola Pública: uma situação de jogo”. In: TAVARES, Renan (org.) Entre coxias e recreios: recortes da produção carioca sobre o ensino do teatro. São Caetano do Sul, SP: Yendis Editora, 2006.

Nenhum comentário: